
O cusco transmontano consiste numa derivante do conhecido couscous magrebino. Encontra-se entre nós desde que a influência árabe chegou à Península Ibérica e aí permaneceu durante cerca de sete séculos. Pensa-se que a tradição de “torcer” o cusco possa ter chegado ao território concreto de Bragança e Vinhais trazida igualmente pelos judeus sefarditas que aqui se refugiaram da Santa Inquisição.
A matéria-prima que está na base da confeção do cuscos é a sémola ou a farinha de Trigo-barbela, uma variedade autóctone de cereal, outrora muito abundante em todo o território português.
Desde 2013 que a Associação Tarabelo tem vindo a desenvolver Oficinas de Cusco em Vinhais, no sentido de dar a conhecer a confeção manual deste alimento, valorizar o já reduzido número de mulheres que preserva este conhecimento e o mantem à tona para gerações futuras. Ao mesmo tempo, esta organização sem fins lucrativos tem vindo a estabelecer contactos próximos com os produtores e produtoras de trigo-barbela e de outras variedades cerealíferas da região e a colaborar em projetos de defesa destes recursos genéticos agrícolas e das comunidades locais que os salvaguardam.
O cuscuz, designação globalmente apreendida, derivada da raíz berbere ou árabe kuskus, surgiu no Magrebe, mais concretamente em Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia, e consiste, na sua origem, em sêmola de trigo-duro (Triticum durum) que sofre um cozimento a vapor. É consumido à mão, sobretudo em festas e funerais, acompanhado de cordeiro, frango, passas, mel, entre outros. As mulheres cantam ao longo do processo de fabrico do mesmo e bebem chá de menta. Os primeiros quatro países enumerados viram aprovada, em dezembro de 2020, a sua candidatura do cuscuz a património imaterial da UNESCO. Este património abrange não só o prato em si, mas também os saberes e práticas da produção e consumo a si associadas.
Desde o seu surgimento que o cuscuz viaja pelo mundo, assumindo diferentes formas, processos e produtos finais de acordo com a matéria-prima mais abundante em cada território e com as preferências alimentares do mesmo.
Na Sicília acompanha pratos de peixe (influência líbia e tunisina); é dado a conhecer em França após a invasão da Argélia no século XIX e aí adquire destaque e requinte até aos dias de hoje; no Brasil é composto por sémola ou farinha de milho e fécula de mandioca e terá sido levado pelos portugueses e judeus, por escravos sírio-libaneses no séc. XIX e/ou por marroquinos que emigraram para a Amazónia durante a exploração da borracha; em Cabo Verde é derivado de milho e consumido com mel ou açúcar em pequenos cubos; em território palestiniano é denominado de maftoul (bulgur, trigo duro integral, com grão de grandes proporções), entre outros.
No caso português, sempre associado ao cereal de trigo, o cuscuz ou cusco também consiste numa derivante do conhecido alimento magrebino e encontra-se entre nós desde que a influência árabe chegou à Península Ibérica no séc. VIII e aí permaneceu durante cerca de sete séculos. O seu fabrico tradicional poderá ter desaparecido recentemente dos Açores (Santa Maria), permanece na Madeira (onde é aromatizado com segurelha e consumido em pratos cozidos, vinha-de-alhos e fígado) e persiste em Trás-os-Montes, onde é chamado cuscos ou cusco e não cuscuz. Em Bragança é frequentemente misturado com ovo na sua conceção e, em Vinhais, é consumido com açúcar ou mel, sob a forma de “carola”, em tomatadas, com enchidos, legumes ou cogumelos e sob a forma doce, semelhante ao arroz-doce, assim como em sopas.
Pensa-se que a tradição de “torcer” o cusco também possa ter chegado ao território concreto de Bragança e Vinhais trazida pelos judeus sefarditas que aqui se refugiaram da Santa Inquisição, ou mesmo antes.
Contudo, apesar de atualmente se encontrar confinado aos redutos referidos, o cusco/cuscuz era omnipresente no território nacional e assim o foi até perto do séc. XVIII, momento em que começa a perder algum relevo no continente, mas não na ilha da Madeira.
Inicialmente este é considerado um alimento de cristãos-velhos de baixa condição social, que se associavam aos mouriscos para comer, a escravos chegados a Lisboa e a trabalhadores braçais e crianças. É apenas nos séc. XVI e XVII que é fixado no receituário e destinado às classes priveligiadas. D. Sebastião, neto do Rei D. João III, chega mesmo a legislar contra o consumo excessivo de cuscuz.
Na dimensão histórica e regional transmontana, a matéria-prima que está na base da confeção do cuscos é a farinha de Trigo-barbela, uma variedade autóctone de cereal, outrora muito abundante em todo o território português, mas atualmente desprovida de certificação e caída em desuso, apesar do rejuvenescimento de sementeiras na zona oeste ribatejana e em algumas áreas de Trás-os-montes, entre outras. Em Trás-os-Montes, esta farinha de elevado teor e interesse nutricional foi substituída por farinha de trigo moderna, importada especialmente da Alemanha ou Bélgica, e misturada com a variedade tradicional, produzida nas moagens industriais da região de Bragança.
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